Entreguei a chave do carro a um arrumador (na cidade do Porto). Isto foi o que aconteceu:

Atualizado em 6 Maio, 2019

Este artigo faz parte da autobiografia do Pedro Silva-Santos.

Entreguei a chave do carro a um arrumador (na cidade do Porto). Veja o que aconteceu…

Pouca gente conhece este episódio da minha vida… mas não resisto, tenho que o partilhar consigo!

No dia 17 de setembro de 2009 (tinha criado a minha primeira empresa há 17 dias), desloquei-me até à cidade do Porto para frequentar um workshop prático sobre elaboração de candidaturas a apoios europeus… na expectativa de conseguir submeter um projeto que pudesse apoiar o desenvolvimento do meu negócio.

O workshop começava às 9 de manhã numa sala do Hotel D. Henrique, muito próximo do edifício do Jornal de Notícias, e por isso achei que seria suficiente sair de Viseu (cidade onde morava e onde tinha criado a empresa) às 07:30 da manhã.

Como estava a tentar entrar na cidade do Porto à mesma hora que toda a gente, atrasei-me a chegar ao destino… maldito trânsito!

Nessa altura conduzia um Fiat Stilo com GPS integrado na consola central do carro… era muito à frente para o ano de 2009! Ao chegar à Rua de Gonçalo Cristóvão, o GPS alertou-me para o facto de já estar muito próximo do destino pretendido: o Hotel D. Henrique.

Vi um arrumador de carros a acenar-me mas ignorei-o porque estava numa zona com parquímetros (zona de estacionamento pago).

Encontrei um lugar livre, estacionei rapidamente e, quando me dirigia à bagageira do veículo para ir buscar o portátil, uma voz rouca acabou por me assustar:

– Quanto tempo vai ficar aqui? – perguntou o arrumador de carros.

– Ah… eu? Porquê? Vou ficar o dia todo… estarei numa formação. – respondi.

– Então pode deixar ficar 3€. – ordenou o arrumador como se estivesse a cobrar-me um serviço num parque de estacionamento do qual era proprietário.

– 3€… para si? Eu coloco os 3€ ali (no parquímetro) e daqui a umas horas volto cá para colocar mais uns euros. – respondi – Se quiser comer, eu pago-lhe qualquer coisa num café aqui próximo mas, não lhe vou dar dinheiro!

– Não quero comer… já tomei o pequeno almoço. Eu presto-lhe um serviço e você só tem que me pagar. – disse ele sem hesitar.

– Ai, o ca*****… mas este gajo agora virou empresário? – pensei eu!

Disse-lhe que já estava bastante atrasado para a formação e que não tinha tempo para continuar a conversar.

Coloquei a mão no bolso direito, verifiquei as moedas que tinha em minha posse e, quando estava prestes a inserir a primeira moeda no parquímetro, ele resmungou:

– Está a ser burro! Eu só lá colocava as moedas quando visse que os gajos (da empresa que controla os parquímetros) estavam a chegar.

Fiquei confuso… mas decidi perguntar-lhe:
– Eu deixo-lhe os 3 € para você colocar no parquímetro por mim?

– Claro, é essa a ideia. Se necessitar de colocar mais moedas, eu coloco-as no parquímetro e você paga-me no final do dia. Se não usar os 3€, fico com eles para mim… eu ajudo-o e você ajuda-me! – disse o “empreendedor”.

Aquela abordagem deixou-me completamente de boca aberta. Estava a ser abordado por um arrumador de carros que, apesar de ter os dentes todos estragados, tinha visão… sabia o que estava a fazer e por isso prestava efetivamente um serviço.

Dei-lhe 3€ e disse:
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– Ok, parece-me um bom negócio.

Virei as costas e ele gritou:

– Wow… tem que me deixar a chave do carro! O ticket do parquímetro só é válido se for colocado dentro do veículo, no tablier… bem visível!

Ri-me, enquanto ripostei:

– A chave do meu carro? Você deve estar a brincar! Eu nem o conheço e você quer ficar com a chave do meu carro?

– Não me conhece mas passa a conhecer! Eu tenho a chave destes carros todos… quer ver?

Nesse mesmo instante, o arrumador de carros tirou do bolso do casaco dois molhos de chaves presos numa fita e começou a carregar nos comandos à distância… abrindo cada um dos carros que estava à minha volta.

Que festim! Eu nem estava a acreditar no que estava a ver!

Como já estava muito atrasado para o workshop, depois daquela “demonstração de poder”, pensei:

– Este gajo tem a chave dos Mercedes e dos BMW que estão mesmo aqui ao lado e por isso não tem razões para fugir com o meu Fiat Stilo, certo?

Em menos de um segundo, tomei uma decisão e disse-lhe:

– Ok, fique com a chave e veja lá se toma conta do carro!

Não sei explicar porque é que não senti que esta era a maior parvoíce da minha vida mas eu estava com pressa, a inscrição no workshop tinha sido cara e… os carros Fiat nunca foram muito interessantes para os bandidos! Pelo menos quando comparados com os outros “maquinões” que ele fez questão de destrancar à minha frente.

Às 11 da manhã, fizemos uma pausa para café (no workshop) e eu decidi comentar este episódio insólito com os restantes participantes no evento. Depois de alguns me mostrarem um olhar de pânico, um dos participantes teve coragem para verbalizar o que todos os outros deveriam estar a pensar:

– Humm… estamos no Porto, não estamos numa pequena cidade como Viseu! A esta hora já não tens lá o carro.

Enquanto ouvi estas palavras, fui capaz de “ler o pensamento” de um participante que vivia na cidade do Porto: “Oh parolo, tens que vir à cidade mais vezes para ver se percebes que este mundo não é para totós!“

Acabei de mastigar a bolacha de chocolate que estava a comer, bebi o sumo de laranja que ainda restava no copo e fingi que ia ao WC antes de voltarmos à sala onde decorria o workshop.

Qual WC, qual quê! Desatei a correr desde o Hotel D. Henrique até à rua onde tinha estacionado o meu carro… cheguei lá em menos de 1 minuto!

Quando cheguei perto do Jornal de Notícias, encostei-me ao último pilar do edifício e consegui ver o arrumador de carros e a parte de trás do meu carro (reconheci-o pela antena de rádio!).

Pensei:

– Pacóvios! Afinal o arrumador é um homem sério!

Voltei para o workshop.

Depois de almoço, o que é que eu fiz?
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Fui ao WC do Hotel lavar os dentes, claro!

Nos WCs dos restaurantes e das estações de serviço fica toda a gente a olhar para mim quando me veem lavar os dentes. Dá-me vontade de rir, principalmente na parte final da lavagem em que coloco a língua de fora e a escovo 3 ou 4 segundos. Devo parecer-lhes um extraterrestre a fazer cócegas na língua em frente ao espelho!
Com os dentinhos bem lavados, desloquei-me (sorridente) até ao local onde tinha estacionado o carro.

Ao longe, pareceu-me que o carro ainda estava no mesmo sítio mas eu não via o arrumador.

Senti o ritmo cardíaco a disparar. Ao chegar junto ao carro, olhei à minha volta e não vi nenhum arrumador de carros.


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Poucos segundos depois, junto à parte mais baixa do viaduto, onde estava estacionado um BMW, vi alguém a urinar e pensei:

– Uf… afinal está ali (o mijão)!

Desloquei-me novamente para junto do edifício do Jornal de Notícias e fiquei em choque: era outro arrumador de carros!

Pensei imediatamente que tinha sido enganado. Apesar de o meu carro ainda estar no mesmo local onde o tinha deixado de manhã, eu tinha entregue a chave a um tipo que simplesmente tinha decidido desaparecer.

Os meus colegas (no workshop) já iam ter uma grande história para contar… e eu teria que voltar a casa para ir buscar a chave suplente antes que o meu carro desaparecesse de uma vez por todas.

Aproximei-me do arrumador de carros “mijão” e disse, com um tom enfurecido:

– Oh chefe, o seu colega que estava aqui de manhã… onde é que ele se meteu?

– O Zé? – perguntou o “mijão”.

– Sei lá… deve ser o Zé. – respondi, apercebendo-me que nem sabia o nome do tipo a quem tinha entregue a chave do meu carro.

– Ele foi à oficina encher o pneu de um carro… de um “BM” azul… – referiu.

Nem queria acreditar! Então, o “Zé” andava a passear com os carros?

– Pois… é que ele ficou com a chave do meu carro e daqui a pouco eu tenho que ir embora. – disse eu, tentando disfarçar o pânico que sentia.

– Ele deve estar à espera que a oficina abra (depois de almoço) e não deve demorar.

Um espera desesperante!
Fiquei sentado no muro, junto ao meu carro, durante uns minutos e… nem sombras do “Zé”.

Decidi voltar para o workshop e obrigar-me a pensar que o “mijão” estava a dizer a verdade.

Entrei na sala e, quando me sentei, o colega do lado perguntou:

– Então? Já te desmontaram o carro?

– Nada disso. Está no mesmo sítio e ainda não fui multado… o arrumador está a prestar um excelente serviço! – disse eu, enquanto tentava disfarçar o nervosismo com uma pequena gargalhada.

Obviamente que não me lembro de nada do que o formador partilhou no workshop… até fazermos uma nova pausa para café, por volta das 4 da tarde.

Comi mais duas bolachas e 4 pedaços de bola de carne e voltei, a correr, ao local onde tinha deixado o carro.

Cheguei ao local e não vi o “Zé”… nem o “mijão”
Não havia mais nenhum arrumador de carros naquela rua… mas o meu carro continuava no mesmo local.

– Que grande m****! – pensei – Como é que eu vou tirar daqui o carro ao final do dia?

Ao regressar ao Hotel, depois de passar o edifício do Jornal de Notícias, desci à direita junto a um pequeno jardim… era o atalho que conhecia para regressar rapidamente ao workshop.

Ao fundo do jardim, lá vinha o “Zé”… como se não fosse nada com ele.

Aproximei-me e disse-lhe:

– Então chefe? Precisei de sair com o carro à hora de almoço e você não estava lá em cima para me entregar a chave.

– Eh eh… o meu colega disse-me que tinha passado por lá um cabeludo a perguntar por mim. Eu vi logo que só podia ser você! – referiu.

– E então? Onde é que se meteu? – perguntei eu, para confirmar se a sua história batia certo com a que o “mijão” me tinha contado.

– Fui encher o pneu do carro de um Dr. (Doutor) que trabalha ali (apontou), no Diário de Notícias. Ele é assim um gajo novo como você… mas é um resmungão do cara***!” De manhã, quando estacionou, eu disse-lhe que tinha um pneu em baixo e por isso devia ter um furo lento… um prego no pneu ou uma m**** dessas!!!

– E ele não lhe ligou nenhuma, foi?

– Só me respondeu: Oh “Zé”, mete-te na tua “bida” e toma conta do carro. Se ele chegasse ao fim do dia e visse o pneu em baixo… ui cum car****, eu é que me fo*** – disse o “Zé” aumentando o tom de voz e a quantidade de palavrões no discurso.

– Então… você levou o carro dele e foi encher o pneu? – indaguei eu, incrédulo.

– Claro, só para não ter que o aturar ao fim do dia.

– … e você, pelo menos, tem carta de condução? – perguntei.

– Eu fui camionista durante muitos anos… mas bebia demais! Um dia espatifei um camião por um monte abaixo. Estive quase a morrer mas consegui enganar aquele filho da **** lá de cima (referindo-se a Deus) quando ele me abriu a porta! Eu sempre achei que ia parar ao Inferno e por isso não acreditei que aquela porta aberta fosse para mim!

Eu estava a adorar ouvir o “Zé” e estava a aprender uma grande lição
Vivemos num mundo que se preocupa tanto com as aparências e que discrimina pessoas como os arrumadores de carros… mas o “Zé” estava a prestar realmente um serviço a todos os que estacionavam diariamente naquela zona da cidade do Porto.

Apesar do seu mau aspeto, resultado de uma vida caótica e sofrida, ele conseguia impor alguma dignidade com tudo o que fazia de forma tão séria e dedicada.

Recentemente voltei a passar naquele local porque queria registar uma fotografia com o “Zé” mas tanto ele como o “mijão” já tinham sido substituídos.

Uma vez que o “Zé” já tinha alguma idade em 2009, quando este episódio marcou a minha vida, acredito que ele possa já não estar entre nós.

Esteja ele onde estiver, decidi escrever este artigo para o homenagear e para tornar os seus atos inesquecíveis! Se a vida me correr mal e eu necessitar de ser arrumador de carros, quero ser como ele.

Um abraço “Zé” e até sempre!

Fonte: blog do Pedro Silva-Santos https://silva-santos.com/


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